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Sobre o que sei fazer

Comecei a praticar montanhismo sob a influência da arte impressionista. E isso fez toda a diferença. Há quem colecione borboletas, pedras ou folhas trazidas das montanhas. Eu coleciono paisagens, não as imagens delas registradas em fotografias, mas a impressão de tê-las visto e de ter caminhado por elas, absorvendo seu cheiro e sua geografia. É por isso que o bloco de notas, muito mais do que a câmera fotográfica, é o meu instrumento de colecionador.

Volto das montanhas com várias páginas cheias de anotações. Às vezes, quando escrevo depois de chegar em casa, uso fotografias para ver de novo algum detalhe que pode ter escapado aos meus olhos durante os passeios. Mas as fotografias são apenas o ponto de partida para minhas notas, que não são feitas de descrições, mas de sensações, idéias e sentimentos. Os impressionistas me curaram da ilusão de pensar que na relação da mente com a natureza existem as coisas em si e me mostraram que o que existe são as coisas como as experimentamos, isto é, a nossa experiência delas.

E a experiência de um lugar, assim como a de um acontecimento ou de uma pessoa, pode variar conforme o momento cronológico e psicológico em que a vivenciamos, do mesmo modo como os impressionistas tiveram a genial idéia de dizer “não” ao realismo e se abrir às nuances da natureza, pintando-a conforme o ângulo e a luz do momento.

Não por acaso eles preferiam pintar ao ar livre. Uma tela produzida nessas condições nunca será igual à tela que um pintor realista produz em seu estúdio. A arte impressionista não está comprometida com a verdade em si, seja lá o que for isso, mas com a verdade que aparece aos olhos de quem a contempla e que por isso mesmo é verdade mais profunda.

Acredito que os meus manuscritos de montanhista, por estarem profundamente imbuídos dessa visão de mundo, sejam impublicáveis. Por causa do seu compromisso com a experiência, e não com a descrição, meus relatos soam caóticos e passam da observação de borboletas às considerações sobre a leveza, das folhas à filosofia, das árvores às almas.

Ainda assim, tenho a ousadia de considerar que esse procedimento impressionista de tomar notas é o mais adequado ao leitor que tem o hábito de fazer resenha das obras literárias que leu. Estou convencido de que há semelhança essencial entre a arte de relatar uma leitura e a de fazer o relato de qualquer evento, como um passeio às montanhas por exemplo, na medida em que essas experiências têm em comum o fato de se abrirem à subjetividade.

Pensar que há uma única leitura correta da obra literária é tão ilusório quanto acreditar que existe um único relato válido de um passeio às montanhas. O que existe são as nossas experiências de ler e de passear. Ora, experiências são, por definição, aquilo que não se pode pedir a ninguém que faça por nós. São algo pessoal e único.

Mas, e aqui está o milagre da linguagem, as experiências, embora únicas, são comunicáveis. Comparando relatos de passeios ou relatos de leitura, nós nos damos conta da infinita diversidade humana, que é a razão de ser da infinita riqueza interior do ser humano. Disso se infere que querer que os relatos de passeio e as resenhas sejam iguais é tentar matar a sua riqueza.

A conclusão desse meu impressionismo impõe-se por si mesma: a resenha acadêmica, feita com metodologia e técnica, e aspirando a uma padronização, está para o leitor como a máquina fotográfica está para aqueles montanhistas que, como eu, preferem anotar suas experiências em vez de simplesmente descrever a paisagem. A resenha acadêmica é ponto de partida, não de chegada. Dar a ela um estatuto superior é buscar a quadratura do círculo.

No entanto, essa busca do impossível esteve em voga em alguns momentos da história da teoria literária em que se procurou cercear, ao invés de estimular, a importância da resenha feita pelo leitor, sob o argumento totalmente descabido e sem fundamento de buscar o rigor acadêmico que, acreditava-se, somente os críticos e professores teriam.

O pressuposto desse rigorismo academicista é que, se a resenha crítica for bem feita, não haverá mais nada a acrescentar por parte do leitor. É o mesmo que pensar que um guia de viagem pode substituir a viagem ou que fotografias da montanha bastam para proporcionar a alguém que nunca foi até lá a sensação de ter estado em seu topo.

Não nego que as técnicas acadêmicas sejam úteis e que o leitor de obras literárias possa colocá-las em prática e se beneficiar delas em suas leituras e resenhas. Mas insisto em que elas não passam de algo que existe em função dessa experiência mais importante e insubstituível que é a experiência do texto vivenciada pelo leitor.

Todo leitor deveria resenhar os livros que leu do modo como faria o relato dos passeios que fizesse à montanha. Nos dois casos, a busca de impressões não é incompatível com o rigor técnico. Conhecer objetivamente as técnicas de composição do texto literário, bem como a constituição geológica da montanha, ambos conhecimentos impessoais, não mata a subjetividade que há em experimentar a leitura ou o passeio.

Método impessoal e experiência pessoal de leitura podem andar juntos, o primeiro servindo ao segundo. Do mesmo modo, o prazer de fruir o texto pode coexistir com a sua crítica. Mas que ninguém se iluda: não é a crítica, e sim a experiência pessoal, que possibilita o prazer. Também não é a crítica, mas a experiência da obra, que faz com que aprendamos algo com a literatura que sirva a nós próprios.

A literatura só nos ensina alguma coisa quando a lemos não para falar dela como críticos, mas para conhecer um pouco mais de nós mesmos enquanto experimentamos as impressões que ela nos desperta ou, às vezes, as que despertou em outros leitores que escreveram a respeito de suas leituras. Só essa experiência justifica a literatura como fenômeno estético e fonte de sabedoria.

Se quisermos viver o montanhismo, teremos que deixar de lado os guias de viagem e nos predispor a viajar. Se quisermos vivenciar a experiência estética proporcionada pela obra literária, precisaremos ir além dos roteiros da crítica. Quando isso puder ser feito, estaremos prontos para escalar montanhas feitas de palavras e aptos a voltar de seu topo com algo a acrescentar à nossa coleção de vivências.

Denise Beltrão.

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